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A ambiguidade da Heaven’s Gate

A ambiguidade da Heaven’s Gate

Por Thaynara Brito

Data de publicação: 09/11/2021

 

O que o lagarto simboliza? Porque estou vendo este lagarto? Apesar de nós também fazermos perguntas como essa, o filme de Akinola Davies, Lagarto, não parece se preocupar muito em explicar os significados que estão por trás do animal que desperta a curiosidade de sua protagonista, Juwon, a qual investiga os recantos de uma igreja moderna em Lagos. Misturando imaginação infantil, realidade e fantasia, o curta nos faz embarcar na aventura dessa garota de dentro da igreja Heaven's Gate, ou Portal Celestial.

 

Enquadrada em planos abertos, essa construção tem imensas linhas retas e sólidas que se agigantam em volta da pequenina Juwon. Essa imensidão da instituição cria um contraste importante entre a igreja e a protagonista. Há uma atmosfera de abandono e mistério que é confrontada com a sensação de uma persistente presença, que parece acompanhar Juwon em seu caminhar, mas que não identificamos de primeira.

 

As paredes desgastadas, vegetação crescida e desordenada na área externa da igreja, poças d’água que recobrem o chão do banheiro, a escuridão e o vazio dos espaços nos põe a pensar que Juwon está sozinha. Com o decorrer do filme, contudo, essa impressão se dissipa. Ela não parece estar tão sozinha assim. Nas entranhas dos corredores supostamente desertos desse lugar, percebemos que é necessário para a personagem ser sorrateira, frente a uma instituição dessa magnitude, que se apresenta como um grande labirinto para ela e para nós também.

 

A personagem da atriz Pamilerin Ayodeji equilibra cautela e curiosidade. Juwon não parece ter medo desse lugar, ao mesmo tempo que é visível uma tensão e expectativa do que ela pode encontrar naquele espaço. Esse comportamento define sua presença quase invisível, dúbia, que detém certo poder de observação do espaço, mas que, ao contrário dos objetos católicos espalhados pela igreja, não se apresenta necessariamente como uma ameaça.

 

A onipresença de símbolos católicos e de representações visuais de Jesus causam certo incômodo. A partir de quadros, citações e bonés, e da presença de Juwon na Heaven’s Gate, o filme estabelece dois ângulos principais para propor sua discussão acerca da religiosidade. O primeiro é referente à vigilância. Seja de Juwon, que observa de olhos bem abertos o que está ao seu redor, assim como das figuras católicas espalhadas pela igreja, o que torna a experiência da personagem do filme ambígua.

 

 

A garota pode ir a qualquer lugar dentro do quadro, mas não escapa do peso significativo dessas figuras, de seu controle e de sua moral ligados às dinâmicas de poder e castigo tão relacionados aos preceitos católicos. O segundo ângulo adiciona uma nova questão, e relaciona a igreja ao mundo capitalista contemporâneo, onde os símbolos religiosos se transmutam em mercadoria e lucro. Mas o objetivo do filme não parece ser denunciar a corrupção no centro religioso, mas, antes, explorar tais aspectos controversos dessas simbologias.

 

Quando Juwon encontra com algumas mulheres que separam montantes de dinheiro dentro da igreja e uma delas fecha a porta expulsando-a, num gesto de bloqueio de sua visão, o filme nos mostra uma personagem dando meio sorriso singelo para a pequena garota. O uso da câmera lenta para prolongar o efeito do movimento facial cria uma condescendência da mulher mais velha em relação ao ambiente controverso da igreja.

 

Aos olhos de Juwon, o mundo que a cerca parece uma aventura. Talvez porque ela seja criança, talvez porque ela seja curiosa ou talvez porque não tenha completa noção dos perigos que a ronda. Nessa ambiguidade, Lagarto cria uma teia de complexidades que tange fé, vigilância e capitalismo, a partir do olhar de Juwon, que parece um pouco perdido e desiludido com tudo que está à sua volta.


Este texto foi produzido durante a formação “Perspectivas Pretas: Oficina de Crítica Audiovisual”, conduzida pelo projeto INDETERMINAÇÕES a convite do NICHO 54. Orientados por Gabriel Araújo e Lorenna Rocha, os textos críticos se debruçam sobre os filmes exibidos no NICHO NOVEMBRO 2021.

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