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Cinesia & Pertencimento: um diálogo entre Novo Rio e Afetadas

Cinesia & Pertencimento: um diálogo entre Novo Rio e Afetadas

Por Luan Santos

Data de publicação: 15/11/2021

 

Em Novo Rio (2021), curta de Lorran Dias, e Afetadas (2021), de JEAN, duas instâncias importantes da narrativa estão ligadas às práticas de gerar movimentação – o uso de ruídos sonoros, a câmera trêmula, viagens de avião – e também relações de proximidade – criar encadeamentos de contato entre personagens que compartilham experiências de vida. Tais instâncias conceituais e estéticas, movimento e proximidade, operam justamente nas brechas entre os filmes, nas pontes, no intervalo, constantemente em cinesia. Nos filmes, as movimentações constroem e reconstroem geográficas espaciais e afetivas, encontros e afastamentos, deslocamentos e pertencimentos identitários através do uso de imagens de arquivo caseiras. As imagens da viagem em família ao Ceará nos anos 2000 constitui o acervo pessoal em que Lorran Dias constrói seu documentário com uso de depoimentos e verve ensaística. Por sua vez, JEAN mobiliza o registro de suas andanças por festas, viagens de ônibus e conversas cotidianas entre amigas com desejo de elaborar uma narrativa sem linearidade que se desdobra através do pertencimento gerado por encontros afetivos.

 

Como gerar pertencimentos em meio aos deslocamentos espaciais?

 

Em Novo Rio, imagens borradas de um aeroporto, marcadas pela constância do tempo, são intercaladas por uma legenda explicativa que contextualiza a jornada narrativa que o filme irá se lançar. Semelhante ao modo como são transmitidas as informações referentes aos voos antes da decolagem, Lorran nos apresenta alguns percursos-memórias de suas viagens: a primeira vez que andou de avião quando criança nos anos 2000, juntamente com seus pais, para visitar a cidade natal de sua mãe; e a viagem entre tempos realizada através do filme, utilizando-se das fotografias registradas por seus pais em Tamboril, Ceará, como instaurador de um percurso pelas próprias memórias.

 

Afetadas começa sua jornada com o encontro entre JEAN e sua amiga em um terminal de ônibus. Com olhar inquieto e despojado, ele nos guia através das materialidades fragmentadas da narrativa fílmica, na costura entre espaços e contextos distintos permeados pela atmosfera comunitária de cuidado, e nos apresenta seus círculos afetivos na comunidade LGBTQI+. Acionando gestos de toque, beijos, conversas e companheirismos nessas relações, o olhar-câmera filma e constrói pontes justamente pela movência, pelo devir em conjunto de corpos.

 

A narrativa de Novo Rio é impulsionada por ruídos sonoros que incitam movimentos. Sons de carro, avião decolando, pessoas, passos etc. se contrapõem às imagens estáticas, criando espacialidades em cinesia. A vastidão das terras do Rio de Janeiro vai ficando para trás. Olhando para a janela, os sons de decolagem de aviões nos permitem imaginar tal veículo partindo do chão. É preciso deslocar-se para se aproximar de quem está longe, em um movimento de chegar junto, nutrir as relações que nos constituem.

 

Estar perto é tanto uma prática de afeto quanto uma abordagem estética em Afetadas.  Nutrindo as relações pelo contato, suor, calor, cheiros, a câmera está sempre próxima, como quem está pronta para ouvir ou confessar um segredo. Aura, uma das amigas de JEAN, costura galhos e fios em um tecido colocado em um manequim. Aura, olhando diretamente para a câmera, conta sobre como os hormônios femininos estão ajudando a diminuir os cravos e crescimento de pelos no rosto. Interromper o fluxo da costura através da conversa cotidiana, do papear que versa sobre as intimidades da vida, evidencia um conforto da personagem em ser filmada pelo amigo e uma relação de cumplicidade que se dá além dos limites do enquadramento. Vagueando pelas espacialidades sem estabelecer continuidades, indo de um fragmento audiovisual a outro, busca-se nos desejos conjuntos algum espaço de pertencimento. Com isso, o ambiente da balada queer aparece como espacialidade que reúne experiências de apoio, lugar onde se pode performar livremente e os corpos se movimentam em sinergia. Jean deixa a câmera em um tripé e vai dançar enquanto a fixidez da câmera toma conta do quadro por instantes. A inércia do plano fixo desprograma o movimento constante orquestrado pela câmera-olho de JEAN, gerando contraste e inserindo a presença de outras pessoas como articuladores do olhar. Um amigo a retira do tripé e a torna a movimentá-la, tentando capturar JEAN, que vê mais do que é visto. A presença da câmera gera possibilidades de interações entre quem olha e quem é observado, e inverter esses papéis é também um gesto de partilhar olhares.

 

A cinética do vídeo é interrompida com frames estáticos de certos momentos – a foto tirada entre os amigos, a dança, a foto de casal postada no feed do Instagram – como uma forma de preservar por alguns instantes esses fugidios momentos.

 

Costurando imagens pessoais de viagem em consonância a relatos de outras pessoas que também saíram de estados do Nordeste para a favela da Maré, no Rio de Janeiro, Lorran tece, em Novo Rio, um gesto de aproximação pelos deslocamentos vivenciados por estas pessoas. Sons de ambiência com passarinhos cantando e animais de roça se movimentando nos apresentam as paisagens e a casa do avô de Lorran em Tamboril. O avô que viu pela última vez nesta viagem. Acionando a oralidade no gesto fílmico, Almerinda Muniz, nascida na Paraíba, e Rosa Muniz, nascida no Maranhão, vagueiam pelas histórias de suas mudanças para o Rio de Janeiro. As falas são fragmentadas, ora fala Almerinda e ora Rosa, tecendo um procedimento de consonância entre essas experiências compartilhadas. As falas de cada uma não são contextualizadas por indicações na legenda ou aparição física, mas colocadas em conexão, em um fluxo contínuo de implicações entre os assuntos abordados. Essa abordagem cria tessituras entre vivências diferentes, mas que giram sobre o contexto da migração nordestina para o Sudeste, o que acaba gerando um espaço de partilha - o filme - onde essas falas podem ser acolhidas em conjunto.

 

 

Em Afetadas, a costura entre tempo e espaço, texturas de imagens e telas de Instagram se dá além das articulações de montagem, mas também no ato de costurar a vestimenta artística de instalação, composta por materiais orgânicos e inorgânicos, forjado pela tessitura entre materialidades distintas. O fazer artístico como ponte entre pessoas, movimentação de desejos e espaços de adensar as perspectivas compartilhadas.

 

A montagem de Novo Rio articula as vozes conjuntamente com as imagens do avô e da mãe – fragmentando as mãos, os pés, o rosto – numa elaboração nostálgica que se dá pela reelaboração dessas imagens atreladas a vivências de outras pessoas de fora do núcleo familiar de Lorran, constituindo pontes que se dão entre o particular e o coletivo. Essa forma de montar propicia movimentos opostos que se complementam na constituição da narrativa. As fotos tiradas no Ceará marcam o retorno de Tânia, mãe de Lorran, para a cidade onde nasceu, assim como o filho nascido no Sudeste, indo ao Nordeste pela primeira vez. Ao passo em que as narrações de Almerinda e Rosa apontam, no gesto de relembrar, as experiências vividas ao sair de suas cidades de origem. O encontro está no entre esses dois deslocamentos, no meio onde essas narrativas se entrecruzam através da partilha. O ato de relembrar e evocar a nostalgia para falar de como o Rio de Janeiro se constitui pela migração de nordestinos e, através das imagens, fazer as personagens retornarem ao Nordeste. A ponte Niterói, mencionada por uma das entrevistadas, marca a chegada da personagem no Rio de Janeiro, mas também evidencia a participação massiva de nordestinos na construção da ponte.

 

Uma das mulheres narra o começo de relacionamento com uma mulher após a chegada ao Rio, assim como expõe a impossibilidade de florescimento dessa relação em sua cidade natal. Elas estão juntas até hoje. A outra mulher conta seu anseio em receber cartas e notícias de sua família na Paraíba. As cartas formam as conexões entre quem foi e quem ficou, assim como uma relíquia a se guardar – ela chegou a guardar dezenas de cartas –, mesmo estas demorando a chegar.

 

Afetadas aposta na particularidade de certos encontros e pessoas, na pulsação de registrar quem se gosta para constituir redes de afetações. Novo Rio elabora seu jogo na confluência com as experiências partilhadas, as embaralhando de modo a borrar as fronteiras de particularidades e construir um terreno fílmico para cultivar a sinergia. Enquanto Afetadas se coloca na constante errância, no mover-se entre espacialidades e pessoas, assumindo o risco da experimentação como elaboração de uma narrativa incerta, Novo Rio se mostra uma obra concisa, coreografada tecnicamente para chegar a um resultado determinado, com pouca variação rítmica na montagem – exceto o momento em que o emblema do Batman rasga a compostura da narrativa para acionar fotografias de Lorran vestido do herói.

 

Ambos os filmes parecem trazer o espalhamento como um lugar de criação e, assim, constituem-se enquanto fractais espelhados em suas constituições formais. Em Novo Rio, ao colocar de forma implicada imagens da trajetória de Tânia, assim como a de Lorran, entrelaçadas com as narrações de Almerinda e Rosa, compõem-se diferentes partes que refletem traços em comum. Narratividade que não se pretende capturar o eu individualizado, mas justamente fazer do eu ponte para abrigar o outro. À medida que Afetadas forja a vestimenta da apresentação artística ao final do filme com um espelho no lugar do rosto. Esse espelho como constituinte de aproximações entre pessoas distintas em suas formas de ser e estar no mundo, mas que cria confluências de desejos e reconhecimento que as colocam em conjunto, em sinergia. Nutrir as relações afetivas, os encontros, e, com isso, possibilitar espaços de pertencer em contato com o outro. 


Este texto foi produzido durante a formação “Perspectivas Pretas: Oficina de Crítica Audiovisual”, conduzida pelo projeto INDETERMINAÇÕES a convite do NICHO 54. Orientados por Gabriel Araújo e Lorenna Rocha, os textos críticos se debruçam sobre os filmes exibidos no NICHO NOVEMBRO 2021.

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