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Desejar é mover: perspectivas de existência em Meninos Rimam e Eyimofe

Desejar é mover: perspectivas de existência em Meninos Rimam e Eyimofe

Por Thaynara Brito

Data de publicação: 15/11/2021

 

Se não deixamos de observar na história do cinema a recorrência de filmes que focam em tragédia e dor pretas, vide Green Book: o Guia (Peter Farrelly, 2018) e 12 Anos de Escravidão (Steve McQueen, 2013), no curta Meninos Rimam (Lucas Nunes, 2020) e no longa Eyimofe: esse é meu desejo (Arie e Chuko Esiri, 2020) seguimos por outra direção com recortes cotidianos de vida preta partindo do gesto revolucionário do desejo. Os filmes realizam a difícil tarefa de representar esse desejar fincado numa realidade que dá forma e substância a ambas as narrativas. O curta brasileiro e o longa nigeriano constroem os interesses e espaços de ação das personagens sem, por um lado, torná-las ingenuamente positivas ou super-humanas, ou, por outro, torná-las trágicas. Importante essa escolha das duas realizações de deslocar a tragédia do centro da tela e explorar realidades pretas em suas nuances e coexistências: prazer, dor, conquistas e escolhas.

 

Desejo. Expectativa de possuir ou alcançar algo. Em parte consoante com ambição – não aquela amarrada ao sentido de acúmulo econômico e da ganância, mas sim representada no anseio de conquistar um objetivo. Encontrar os mecanismos e driblar as adversidades para conquistar algo nos força ao movimento e é nessa articulação de encontros, ambições, afetos e necessidades que Eyimofe e Meninos Rimam trabalham. Vemos em tela que o desejar importa porque, em seu centro, é o impulso norteador de uma existência.

 

Eyimofe é separado em três partes, marcadas por cartelas. Elas traçam limites nítidos entre a história de Rosa (Temiloluwa Ami-Williams) e de Mofe (Jude Akuwudike). Os dois protagonistas nunca se apercebem, mas coexistem habitando o mesmo espaço e contexto – uma dança do não encontro. A primeira parte intitulada “Espanha” introduz Mofe, personagem contido e taciturno, que quase nunca verbaliza o que quer, mas articula mundos e fundos em dois empregos para preparar sua migração para a Europa. Já Rosa nos é apresentada na segunda parte do filme. Planejando recomeçar sua vida na Itália, ela trabalha em dois empregos e aluga uma casa minúscula com sua irmã no mesmo conjunto residencial onde Mofe mora. De poucas palavras, Rosa é objetiva e possui uma presença marcante em tela. Ela se articula em jogos de poder transitando por espaços machistas e misóginos, buscando possibilidades de sobrevivência nas brechas do controle que outros homens supostamente têm sobre ela. Talvez no filme todo o único momento em que sua voz soa mais alta que o necessário é na incerteza da saúde de sua irmã, internada no hospital. Neste autocontrole corporal quase milimétrico, mesmo em momentos sob os quais ela não tem exatamente escolha, a força de Rosa fica evidente.

 

Mofe e Rosa articulam à sua maneira as tensões sociais, econômicas, raciais e patriarcais que permeiam suas vidas na periferia de Lagos, ao passo em que também afirmam seus afetos e desejos. Não há conquistas dramáticas em favor de discursos meritocráticos. Fica evidente que a chave de um possível sucesso e estabilidade econômica não está no eterno desgaste do corpo em quantos empregos forem possíveis. Mesmo quando o roteiro aponta reviravoltas trágicas, parece que Rosa e Mofe respiram, pensam, calculam perdas e escolhem, dentre as poucas opções, o caminho que machuca menos. Como no desenrolar das emergências cotidianas, não há tempo nem espaço para percepção completa do sofrimento. Eles escolhem a si mesmos e suas ambições, sem outra possibilidade que não seja prosseguir adiante. Afinal, assim são as coisas no universo que construíram e que os construiu.

 

Construir um universo possível para a busca do que se deseja. Ou desejar algo de maneira a construir universos alternativos. Em suma, o desejo é motor.

    

Em Meninos Rimam, Arthur (Gabriel Almeida) e Alexandre (Marcos Maciel) são dois adolescentes de uma periferia que compartilham ambições e sonhos enquanto mantêm os pés assentados no presente. No filme, há uma busca para se compreender quem se é, e, mais ainda do que compreender, afirmar-se, encontrar o desejo, sentir o desejo, entender o desejo. A realização faz uma escolha estética de dualidade de imagem, ora contando a história de fora, ora buscando aproximar a imagem na tela com o olhar subjetivo do protagonista que filma seu dia-a-dia. Tal recurso às vezes se confunde com o fazer fílmico em si, talvez gestos do acaso, mas que quase nos puxam para longe da história e distante da intimidade a que o filme se propõe.

 

Apesar disso, temos uma conexão imediata que vem pela entrega dos atores e pela proposta narrativa, que compõem detalhes sutis de gestual e de espaços. Esta composição se faz pelos closes, que revelam significados quando Arthur cala, e parecem lhe emprestar olhos quando ele próprio não pode explorar. Se faz também pela arquitetura das locações, que tanto funcionam como complemento para conhecermos os dois meninos e suas rotinas, quanto influenciam nas escolhas de filmagem e mise en scène: quando eles podem se aproximar e quando devem distanciar, quando a dor é escondida e quando o afeto é sugerido.

 

Arthur faz um curso de audiovisual e carrega uma câmera digital por todo lado. Alexandre elabora suas rimas e se empolga com a ideia de filmar um videoclipe, gravado nos intervalos entre a escola e o trabalho. Ao se unirem na construção de suas autoimagens, os dois descobrem o afeto romântico, feito a princípio por gestos diminutos e hesitantes, centrados em si, e que quase se evadem nos limites do quadro, para então tornar-se uma expectativa densa no ar, feita dos olhares trocados à distância, do toque discreto, do jogo entre manter os dois juntos no quadro para então separá-los em distâncias, plano e contra-plano. Um buscando no outro a confirmação do desejo compartilhado sem verbalizá-lo, ambos receosos do lugar vulnerável que é expor o que sente.

 

O período da adolescência que os personagens atravessam aponta para um momento da vida em que mais constantemente lida-se com, por um lado, a pressão para definir uma imagem individual e autêntica de quem se é e, ao mesmo tempo, descobrir um espaço afetivo de pertencimento coletivo. Daí a tensão que essa dualidade cria em diversos momentos, manifestando-se pela presença do grupo de amigos e a imposição a performar uma masculinidade ficcional do homem macho e conquistador, que não contempla Arthur, mas ainda assim o aflige pela necessidade de alcançar essa expectativa ou questioná-la.

 

Da quadra da escola para as pistas, passando pela laje e a praça, estão as amizades, encontros e dores de Arthur e Alexandre. Os dois escrevem e reescrevem sua imagem a todo instante, num percurso que parte tanto de dentro para fora com a percepção do desejo compartilhado, quanto de fora para dentro pelas pressões e imposições sociais sobre quem são e o amor que sentem. O vídeo, a música, o skate, até mesmo o usar ou não um brinco na orelha, como vemos na primeira cena, são movimentações oriundas do desejo que os impulsiona, tencionando pertença e reconhecimento – vontade de encontrar, no outro, companheirismo.

 

Entre as pressões que vêm de fora e as incertezas que vem de dentro, poder ser mais de uma coisa é também um salto de coragem. Mais fácil seria, como fala o rap no começo de Meninos Rimam, pegar da força de Madara ou das células de Hashirama, poderes fantásticos a nos assegurar e proteger. No universo de Naruto, tornar-se a pessoa que está destinada a ser é inevitável, pois através da resiliência e da palavra nada é exatamente impossível. Certo? Esse é seu nindō, o caminho ninja.

 

Existir em meio ao caos, permitir-se desejar o afeto e ambicionar uma vida de conquistas e segurança. Representar esse caos sem deixar que ele se torne a única lente pela qual é possível retratar os personagens. Abordar seus desejos sem esconder as forças cotidianas que atuam para afastá-los ou aproximá-los. Este é o desafio proposto em Eyimofe e Meninos Rimam.


Este texto foi produzido durante a formação “Perspectivas Pretas: Oficina de Crítica Audiovisual”, conduzida pelo projeto INDETERMINAÇÕES a convite do NICHO 54. Orientados por Gabriel Araújo e Lorenna Rocha, os textos críticos se debruçam sobre os filmes exibidos no NICHO NOVEMBRO 2021.

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