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Fronteiras do afeto e a reinvenção da memória

Fronteiras do afeto e a reinvenção da memória

Por Ana Carol Alves

Data de publicação: 18/11/2021

Estamos na comunidade indígena dos Quillasingas, situada em uma deslumbrante região montanhosa de Nariño, no sul da Colômbia. Camilo Andrés Jojoa, um jovem tímido, ouve sua música preferida em seu barco. Em círculos, ele navega pelas águas profundas e cinzentas sob o céu chuvoso da Lagoa da Cocha, dando voltas ao redor de si mesmo, no entardecer. A emblemática cena do documentário Entre fogo e água (Viviana Gómez Echeverry, Anton Wenzel, 2020) ilustra a particular procura de um homem por respostas. Na história, Camilo é um jovem negro, filho adotivo de pais indígenas. Ele não se sente parte do lugar em que vive, e passa a buscar sua mãe biológica.

 

Durante toda a sua vida, Camilo carregou consigo o fardo de viver sem saber articular suas duas origens: a de homem negro e a de homem indígena. Assim, a sua jornada é uma busca por identidade, ao mesmo tempo que nos é revelado o quão difícil é definir o que ela pode ser. Camilo demonstra certa violência com a família e abusa do álcool como válvula de escape para demonstrar seus sentimentos. Durante o percurso do documentário descobrimos que o personagem sofreu violências marcantes durante toda sua vida escolar – explicitadas em relatos de bullying e introversão – por ser diferente dos outros, o que certamente não o fez se reconhecer positivamente como um homem negro. 

 

O Instituto Bem-Estar Familiar é uma entidade colombiana que trabalha pela proteção integral e fortalecimento de jovens e famílias. Muitas das cenas do filme se passam nesse espaço, e a maioria delas sãos brutais. Há um objeto de cena, uma pasta verde, simples, de plástico com elásticos, que é sempre colocada em primeiro plano nos enquadramentos quando a família de Camilo visita o local. É ali que os personagens do filme acessam todos os documentos que provam de onde Camilo veio e como ocorreu seu processo de adoção. 

 

A direção de Viviana Gómez é muito sensível ao abordar alguns símbolos do cotidiano do personagem que intensificam fissuras e remendos possíveis em seus gestos, evidenciando sua complexidade. Em uma das sequências, por exemplo, Camilo não sabe qual papel mostrar primeiro para a atendente do Instituto, o que desenha com precisão o quão delicada é sua situação – como se o potencial do personagem estivesse ali impresso, guardado, precisando ser apenas reconhecido. Vemos um sutil constrangimento que é acompanhado de uma imensa coragem. A presença da família de Camilo em cenas como essa é um dos fatores que também gera força para essas imagens.

 

O segundo personagem mais importante do filme é o pai adotivo de Camilo, Taita Norberto. Muitas das cenas compartilhadas entre eles são seladas em um tipo confortável de silêncio que nos aproxima da ideia de uma verdadeira intimidade. Há muitos homens negros como Camilo que lutam contra a depressão e ali permanecem porque não sabem como se localizar em seus traumas, ou porque têm vergonha. Taita Norberto parece entender isso e sua figura durante todo o filme é a de suporte. O pai de Camilo chora muito durante o filme (água), e na mesma medida é a figura central de afeto e segurança para o filho (fogo). Eles sempre estão juntos preparando as ervas na fogueira, experimentando rapé, pescando e conversando. E é com o pai que Camilo experimenta o uso da ayahuasca.

 

O título da obra, que traz os elementos do fogo e da água, também dialoga com a espiritualidade de Camilo. Ao buscar sua mãe, o jovem descobre que ela veio da cidade de Tumaco, uma região praiana da costa pacífica, de habitantes afrodescendentes. Camilo, no entanto, viveu durante toda a vida na reserva indígena nas montanhas, onde o clima é frio e nublado. As fricções entre os dois impulsos de existência de Camilo se figuram de várias maneiras ao longo do filme, deliberadamente se opondo. Ele é fogo ou água? Ter de decidir se irá em busca da mãe ou aceitar-se indígena estabelece uma espécie de fronteira do afeto, como se fosse preciso negar uma origem em detrimento da outra. Os elementos fogo e água também são sensivelmente abordados na relação de Camilo com a natureza. Apesar de viver vagando sozinho em seu barco, ao chegar em casa sempre há uma fogueira acesa. 

 

Viviana Gómez dirige e também faz a fotografia do filme, trabalhando majoritariamente com o uso de luz natural. Fogo está sempre presente na casa dos Quillasinga. Toda a atmosfera é criada para que o filme parecesse o mais natural possível. Além de contar a história de um jovem em busca de sua identidade, Entre fogo e água é uma notável efígie de uma sociedade amorosa com valores e rituais ancestrais.

 

Se em Entre fogo e água assistimos a uma busca infinita por afetos apagados da vida de um indivíduo, Novo Rio, curta do brasileiro Lorran Dias, evidencia o caminho inverso, pois a história nele aqui definida e registrada atua como reinvenção da memória.

 

Um híbrido entre filme e vídeo-arte, o curta-metragem trata da narrativa da família do cineasta, que migrou da cidade de Tamboril, no Ceará, para o Rio de Janeiro, e se estabeleceu favela da Maré. No filme, Lorran dá vida às fotografias de uma viagem que fez à cidade natal de sua mãe, Tania Dias, costurando através das imagens a distância entre esses dois lugares. Para Lorran, o Rio de Janeiro é formado por todo um outro Brasil, que para ele até então era invisível. Ao viajar e materializar essas origens, ele ressignifica sua própria cidade, seu próprio ser, e o de sua família e amigos.

 

É delicado o trabalho imersivo feito por Lorran, que promove a recriação de memórias de sua infância. Fotos de avião acompanham sons de turbinas aquecidas, vento e pressurização. Fotos de uma vida rural e simples acompanham sons de animais e uma calmaria característica de um lar que mais parece um sonho. As imagens possuem filtros com cores diversas, sendo essa uma particularidade de fotos produzidas por câmeras analógicas. O azul e laranja dessas fotos dão aqui um fundamento de que as memórias podem ter cores. Há ainda uma outra camada narrativa, que é a de depoimentos, aqui colhidos de outras personagens que vivem na mesma região em que o diretor nasceu, e que também vieram de outras partes do Brasil, como Almerinda Muniz e Rosa Muniz. Tais histórias se sobrepõem às fotos da mãe de Lorran e performam um multiverso de reminiscências compartilhadas.

 

Novo Rio é o nome da estação rodoviária em que muitas destas pessoas desembarcaram ao chegar no Rio de Janeiro, sendo este um lugar muito significativo para as idas e vindas, onde algo fica para que algo novo nasça. Entendo que, para além disso, o Rio de Janeiro apresenta sempre uma nova versão de si mesmo a cada vez que alguém ali desembarca. A cada nova vida, um novo Rio. Talvez o maior trunfo sobre esse filme seja a celebração entre cinema e memória, e um olhar muito gentil e afetuoso para os personagens de um país de tanta história.

 

Entre fogo e água e Novo Rio são filmes que propõem o alargamento das fronteiras de nossos afetos. Camilo e Lorran estão dispostos a enfrentar suas vulnerabilidades, reescrevendo suas vidas. São histórias de pessoas que ganham força quando alinhadas às memórias de outras pessoas, que vieram de outros espaços. Como se não houvesse de verdade um lugar que nos pertencesse e, em vez disso, fôssemos possíveis inteiros apenas em consequência dos lugares, diversos, distantes e plurais, que nos formam. Até que chegássemos aqui, saudosos e vagantes, em busca de onde viemos. 

 


Este texto foi produzido durante a formação “Perspectivas Pretas: Oficina de Crítica Audiovisual”, conduzida pelo projeto INDETERMINAÇÕES a convite do NICHO 54. Orientados por Gabriel Araújo e Lorenna Rocha, os textos críticos se debruçam sobre os filmes exibidos no NICHO NOVEMBRO 2021.

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