“Guarda-me como a menina dos teus olhos”

 

Atenção: este texto contém spoilers

 

Lagarto (2021), de Akinola Davies, começa com um plano fechado na imagem de um Jesus branco. A câmera vai abrindo e vemos um homem rezando, como se pedisse proteção. Em seguida, ele aparece ninando uma criança. A sequência toda é marcada por uma música que nos dá um sentimento de tensão. Percebemos que, na verdade, ele estava se despedindo da filha e que logo entraria em um furgão amarelo com outros rapazes (guardem essa informação, pois retornaremos a essa imagem no final do filme).

 

Na cena seguinte, conhecemos nossa protagonista, Juwon (Pamilerin Ayodeji), uma criança que, após ser retirada da aula de educação religiosa, guiada inicialmente por um lagarto, se deixa levar pela curiosidade a desbravar cada ambiente de uma igreja. Os símbolos religiosos estão espalhados como firmamento da fé e como guia de Juwon.

 

Primeira aparição de Jesus

 

Em sua primeira aparição, a atenção da personagem se desloca para a fala de seu professor, que diz: “Mãos desocupadas, oficina do diabo. Concentrem-se nos seus trabalhos, concentrem-se em Jesus”. É na relação entre Juwon e o Jesus branco que se desenvolve a ficção de Akinola Davies. O filme traz sequências de aparições de imagens de Cristo se relacionando diretamente com as imagens de Juwon. Através de closes e super closes, acompanhamos o desvendar do ambiente por essa criança, como se nada, por mais escondido que fosse, passasse despercebido por seus olhos. Ela, assim como Jesus Cristo, segundo a bíblia, se torna onipresente.

 

Para além de mostrar a religião, o filme vai descortinando as contradições das pessoas que ocupam aquela igreja. A câmera vai passeando em planos abertos e fechados, revelando as frestas, luzes, texturas, cores e clima dessa mega instituição. Também, através da sonoplastia e das expressões de Juwon, vamos nos deixando contaminar pelos sentimentos contraditórios gerados.

 

 

Segunda aparição de Jesus

 

Depois de caminhar por vários espaços da igreja, Juwon chega a uma sala. Neste momento, somos encarados, mais uma vez, pelos olhos de Cristo e, em sequência, temos um contra-plano dos olhos de Juwon, uma troca que sugere cumplicidade entre os dois e onipresença. A câmera vai nos entregando, aos poucos, o que existe de intrigante na sala. Muitas mulheres, pilhas e mais pilhas de dinheiro… A descoberta de Juwon é interrompida pelo olhar e o sorriso compassivo de uma irmã, que fecha a porta e impede a visão da garota. Diante dessa descoberta, seriam aqueles novos fariseus?

 

Em Mateus 6:24, repetida em Lucas 16:13, Jesus disse:

 

"Ninguém pode servir a dois senhores; pois odiará a um e amará o outro, ou se dedicará a um e desprezará o outro. Vocês não podem servir a Deus e ao Dinheiro".

 

Será?

 

 

Terceira aparição de Jesus

 

Na sede juvenil por descobertas, a personagem de Pamilerin Ayodeji ocupa a tela com silêncio de palavras, mas barulho e preenchimento de emoções e subtextos. A sensação que nos dá é de que podemos escutar todos os seus pensamentos, sentir seu coração e sua respiração ofegante, ritmada por uma sonoplastia de suspense e mistério. Em seu perambular na igreja, Juwon descobre uma possível relação íntima entre o pastor e uma mulher. Mais uma vez, o Cristo se faz presente em forma de boneco, solitário e esquecido no espaço, dividindo esse momento de observação e segredo. Seria mais um "pecado" caindo em terra?

 

Em Mateus 5:27-48 diz:

 

"Eu, porém, digo: quem olhar para uma mulher com cobiça, já cometeu adultério com ela no seu coração. Portanto, se o teu olho direito te leva à cobiça, tira-o e arremessa-o para longe de ti! Melhor é que seja destruída uma parte do teu corpo do que seres lançados todo inteiro no inferno. E se a tua mão, mesmo que seja a direita, te fizer pecar, corta-a e arremessa-a para longe de ti! Mais vale ficares privado de parte do teu corpo do que ires parar inteiro ao inferno."

 

Nas cenas finais, temos mais pistas de um suposto adultério, já que o pastor encontra a criança, tenta reprimi-la e coagi-la a não revelar o que foi visto, usando palavras de fé e uma certa violência física, gerando estranheza na tia de Juwon que assistia à conversa. Uma tarde inteira se deparando com tantas contradições… O que resta a Juwon crer? Ou aos olhos de uma criança tudo isso é irrelevante?

 

 

Segunda aparição do lagarto

 

O mesmo lagarto que dá o pontapé inicial no desvendar dos espaços reaparece na porta da igreja, à frente de um letreiro que diz: "Portão do céu". Seria esse um presságio?

 

Depois de desmembrar a igreja, mutilando parte por parte, descobrindo condutas e espaços escondidos, Juwon ganha fala e mostra que até uma criança precisa saber jogar o jogo dos adultos para conseguir o que quer.

 

 

Última aparição de Jesus

 

Finalizamos o curta com a câmera registrando a imagem de Cristo, agora representada por um adesivo no furgão amarelo, com um grupo de homens, incluindo o personagem que vimos na primeira sequência do filme.

 

É nesse momento do filme que descobrimos que eles são assaltantes e, estranhamente ou não, eles também acreditam que estariam cometendo uma ação pecaminosa diante dos olhos desse Deus, pois rezam antes de assaltar, pedem proteção e “levam” Cristo consigo, aquele que é “nossa imagem e semelhança”.

 

Os olhares do Jesus branco com a garota se deslocam para a relação de Juwon com o personagem do furgão. É como se ela implorasse por algo. Olhar para aquele homem talvez fosse um pedido como:  “não mate minha tia”. O homem, em contrapartida, parece entendê-la. Essa comunicação não-verbal é enfatizada pelo revezamento de planos dos rostos dos personagens, nos afetando, causando ansiedade, tensão e medo.

 

Após o assalto, com todos saindo ilesos, pelo menos fisicamente, Juwon segue com a família para um lugar seguro. Nos resta fazer novamente as seguintes perguntas: diante de uma tarde se deparando com tantas contradições, o que sobra a Juwon crer? Ou aos olhos de uma criança tudo isso é irrelevante?