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Para dentro, e dentro, e dentro

Para dentro, e dentro, e dentro

Por Ana Carol Alves

Data de publicação: 15/11/2021

 

Não cabe nos dedos das minhas mãos as vezes que experienciei o medo com meus irmãos. O medo quando compartilhado é ramificado. Tem o que meu irmão viu, o que minha irmã viu e o que eu vi. Ele fica dividido em raízes e avança profundamente na memória, pelos dias e no tempo. Para dentro, e dentro, e dentro.

 

Aquilombados, de Damián Sainz Edwards, é um filme sobre um homem com medo. No curta-metragem cubano, Orestes (Reynier Morales) busca por seu irmão, Damián (César Dominguez), nos bosques, pela madrugada. A jornada de Orestes mata adentro revela uma constelação de imagens muito particulares de um suposto universo masculino em que terror e deleite fazem parte de um mesmo impulso.

 

No início de sua jornada, o personagem de Orestes encontra um ancestral usando uma arma como a dele. Eles se encaram, reconhecendo um ao outro em si mesmos, como quem se olha diante de um espelho. E, então, fogem juntos. Na fuga dos dois, vivemos o terror dos espíritos ancestrais, os negros cimarrones cubanos que fugiam da escravidão. Vemos também homens libertinos – ue nos créditos do filme se identificam como sátiros – se insinuando para Orestes, em uma difusa e consistente performance erótica. É ali, entre os seres mitológicos, que ele encontra finalmente o seu irmão.

 

Em meio a essa busca, Orestes entra em contato com dois estados de terror: um de repulsa pelo reconhecimento da homoafetividade, o outro pelo racismo. Curiosamente, o protagonista que inicia sua jornada traçando uma forma de localizar o seu irmão, é o mesmo que, no fim, precisa criar uma rota para fugir. E então ele corre ainda mais para dentro, e dentro, e dentro.

 

A tessitura da imagem sexual do filme compõe dissonantes experiências. Ela é o entendimento de Orestes para a vida de Damián, que o irmão não compreende. Expõe a feitura e a particularidade dos desejos e a excêntrica percepção de um homem que não está disposto a ver o que está buscando. Orestes controla a arma que segura, seu facão, mas não controla o que vê ou como é visto. O desejo do outro não lhe pertence, a experiência do outro não lhe pertence. O que lhe resta? Seu medo?

 

Orestes grita por Damián durante boa parte do filme. Sua voz ressoa fúria, preocupação e socorro. É interessante apontar que Damián é também o nome do realizador do filme, que hoje assina apenas como Dami Sainz Edwards. É evidente, portanto, que o diretor fala aqui de si mesmo, assim como Orestes, que quando encontra o seu igual em sua fuga, encontra a si mesmo.

 

As figuras da mitologia grega não apenas argumentam a abordagem quimérica da história, na mesma medida que a nega. Como se os sentidos fossem fantasiosos, no passo em que as violências são reais. A exemplo disto, vemos que a jornada da busca pelo irmão, os sátiros, os ancestrais-espelho, e o latido dos cães e sirenes policiais se dissipam com o sol da manhã no final do filme. No entanto, Damián e Orestes ainda carregam consigo uma camisa ensanguentada, simbolizando a marca da perseguição aos negros através dos séculos.

 

No desfecho, o esguio Damián embala o forte e destemido Orestes, ninando o irmão enquanto os pesadelos se dissipam através do vento na noite. Na última cena do curta, acompanhamos a chegada do sol. À luz, talvez seja mais fácil caminhar agora. E não à toa, o enquadramento final do filme coloca Damián liderando a caminhada em direção a casa, levando sua blusa ensanguentada como guia, parecendo ser esse, afinal, o caminho mais longo a ser percorrido. Que bom que ele o faz ao lado do irmão.


Este texto foi produzido durante a formação “Perspectivas Pretas: Oficina de Crítica Audiovisual”, conduzida pelo projeto INDETERMINAÇÕES a convite do NICHO 54. Orientados por Gabriel Araújo e Lorenna Rocha, os textos críticos se debruçam sobre os filmes exibidos no NICHO NOVEMBRO 2021.

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