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Quando o filme se interrompe

Quando o filme se interrompe

Por Egberto Santana

Data de publicação: 15/11/2021

 

Durante o visionamento de três obras exibidas na edição 2021 da Nicho Novembro, sendo duas delas parceiras de uma mesma seção curatorial, notei uma interrupção durante uma experiência, uma quebra de experiência entre eu e o filme. Dessa quebra nasceu outro tipo de abertura, cuja tentativa de desenho será feita aqui.

 

Em Noor & Nayla (Fawzia Mirza, 2020) é criada uma possível unidade do relacionamento das duas mulheres, plantada desde o primeiro encontro do casal do título. Em Como respirar fora d'água (Júlia Fávero, Victoria Negreiros, 2021), a interrupção se destaca na ligação entre quem assiste com a relação dos personagens em tela, fechando uma solução e desistindo de possibilidades outras. Em Eyimofe: esse é meu desejo, a quebra é visual e é a evidência da ligação dos nossos personagens, assim como o próprio fim de cada um deles.

 

Nas próximas linhas, tento identificar o modo como essa interrupção toma forma, sentido a matéria em cada um dos filmes. Por fim, ensaio traçar uma linha entre os três, unidos pela formulação “quando o filme se interrompe”. Ou quando ele se quebra, como preferir.

 

Noor & Nayla

 

A relação do casal que dá nome ao título do filme dá também tessitura a ele. São duas mulheres muçulmanas em diferentes momentos de seu relacionamento. O jogo é caracterizado por um diálogo que retrocede do fim do namoro até o primeiro encontro entre elas, em diferentes espaços da casa de Noor (Nicole Nwokolo) e Layla (Sahar B. Agustin-Maleki). O filme possui cinco marcadores em forma de capítulo, dividindo o conjunto de cenas. A química entre as duas e as brincadeiras amorosas de cada uma, em close ou em plano e contra-plano, proporcionam um tom divertido para a experiência. Todo esse embate obriga o espectador a construir as relações existentes ali, subentendidas por conta da cama bagunçada, da troca de objetos entre elas, a troca aproximada de perguntas e respostas do tipo “isso aqui é seu ou meu?” e até mesmo com o carinho de um beijo.

 

A interrupção em Noor & Layla é parte do filme, pois integra o cotidiano da vida das duas personagens. Seja quando elas estão na banheira fazendo tatuagem de henna ou discutindo o relacionamento, é no momento em que o som do “azaan” toma conta do filme, fazendo chamada para a oração recitada pelos fiéis muçulmanos, que ambas param a troca de afeto. Isso é repetido nas cinco vezes que marcam as conversas do casal.

 

Entre a conversa afetiva do casal e a oração, que nunca é finalizada, é criada uma conexão. O chamado interrompe o diálogo e a conversa das duas, assim como a nossa experiência até aquele momento. Porém, novamente, é também uma repetição de interrupção, fazendo a curiosidade pelo próximo som e a reação das duas ser atiçada no espectador.

 

A escolha dessa marcação não é à toa, como é possível perceber na última cena do filme. É no primeiríssimo encontro entre as duas, quando Noor convida Layla para entrar que há o questionamento: “Você reza?”. Layla hesita, mas aceita. Ouvimos o azaan de outra forma, uma garota desconhecida cantando na esquina enquanto os créditos sobem. Eis aí o fechamento do ciclo, marcado por uma interrupção que une o casal e marca a nossa relação com o filme.

 

Como Respirar Fora D’Água

 

No curta paulistano, a interrupção é, a princípio, concretizada na trama de uma personagem. Jana (Raphaella Rosa), uma jovem mulher preta voltando do treino de natação, é abordada por policiais e sofre um violento enquadro. No plano, não vemos o ato, mas o som e a farda indicam o que está acontecendo. Corta para o título e para Jana pedindo para o seu pai, Julio (Dárcio de Oliveira), buscá-la na rua.

 

No carro, preparados para a volta para casa, o pai diz algo do tipo: "Essas coisas acontecem, filha". Jana se opõe e questiona o pai. Na sinopse, adquirimos a informação de que o pai de Jana também é policial. Dessa reação e dessa profissão nascem o tecido do filme e nossa relação com ele. Afinal, tem muita história entre o imaginário de uma instituição historicamente racista para a relação fraternal com uma pessoa que acabou de passar por um enquadro policial.

 

A partir desse evento e da conversa no carro, por conta das relações em jogo entre a indiferença de um e a discordância de outro, tem-se o choque inicial e a impressão de que as cartas na mesa vão ser postas a qualquer momento, desencadeando ou não uma solução para esse embate. É a partir da espera desses dois momentos que a experiência do curta será pautada.

 

Outro tipo de interrupção se dá no conflito propriamente dito, na conversa entre pai e filha. A cena acontece logo após Jana cheirar um uniforme ensanguentado do pai e a trilha extra diegética do filme apresentar gritos de ordens policiais, indicando que ele, homem preto, também enquadrou outros jovens. No questionamento por parte da filha, há a revelação de um hematoma de Júlio, marca do trabalho policial. Jana também tem um, marca do enquadro. Da revelação é feita a conversa afetiva, rápida e de fácil solução entre os dois. O diálogo se contenta na exploração vazia concentrada nas cicatrizes da imagem, na memória de cada personagem e finaliza a questão com o gesto de mãos dadas. A relação amorosa e fraterna dos dois cresce, ao mesmo tempo que as complexidades das instituições (família e polícia) é interrompida, enfraquecendo a experiência do curta-metragem, como foi muito bem apontado por Luan Santos no texto “Talvez a ambivalência seja um bom lugar para começar”. O filme é resolvido no âmbito particular familiar, e se interrompe ao deixar de fora a vivência pelas complexidades existentes entre a corporação do Estado e a família.

 

Eyimofe: esse é meu desejo

 

Se até agora presenciamos filmes em que o gesto de interrupção se dá na narrativa, na reação dos personagens ou pela nossa experiência com os mesmos, Eyimofe dá a ver essa interrupção de forma explícita na metade da obra, quando a história de Mofe (Jude Akuwudike), mecânico faz-tudo, é cortada por um tela preta para inserir a vida de Rosa (Temiloluwa Ami-Williams), cabeleireira que também faz de tudo para ganhar os seus trocados. Os dois são nossos protagonistas numa história de tentativa de migração localizada na cidade de Lagos, na Nigéria, cheia de obstáculos (ou interrupções) financeiros, sociais e familiares para a realização desse desejo.

 

O cenário é populoso, cuidadosamente arquitetado e enquadrado. Em muitos momentos, os personagens enfrentam situações decisivas sem que o espectador veja quem professa a decisão, estando este fora do plano.  Como nos balcões, quando esperam por uma resposta acerca do transporte dos corpos de parentes recém-falecidos, ou durante a internação de uma jovem grávida, cujo bebê estava para ser doado em troca de uma viagem para Espanha. 

Porém, é de destaque maior no filme justamente o gesto de interromper a história de um personagem para apresentar outro logo em seguida. Isso porque, no decorrer da introdução de Rosa, é constante a tentativa de ligação com Mofe. Se a viagem para fora do país é o que liga um com o outro – ou melhor, o desejo da viagem, visto que ela em si nunca é realizada – como esse choque vai acontecer?

 

Rosa tem de passar por um hospital diversas vezes, devido a complicações da gravidez de sua irmã mais jovem, Grace. Em um momento, as duas compartilham a imagem com Mofe, mas não há troca de olhares ou diálogos. Nós, enquanto espectadores, trocamos os olhares entre os dois. Ou quando percebemos que Vincent é o mesmo cara que cuida da moradia dos dois protagonistas, desenhamos outro tipo de contato – dessa vez uma espécie de conflito de gênero, pois Vincent se mostra compreensível com Mofe, mas forçosamente interesseiro com Rosa. Dessa forma, o longa adere a outro tipo nuance entre os personagens, mas ainda sustenta alguma ligação entre eles.

 

No filme, a interrupção é o que permite fazer as ligações entre esses mundos. Mas é ela também que finaliza a trama da viagem de Mofe, quando ele decide virar autônomo, para voltar depois no epílogo, quando Rosa decide ceder as ideias de Vincent em troca da sua sobrevivência. Se durante o longa é possível captar relações de poder ou as burocracias de um sistema que impede a mobilidade, é também somente por ele que temos conhecimento do que compõe nossos personagens. Uma via de mão dupla, que ora faz crescer, ora diminui o encontro com o filme.

 

*

 

De certa maneira, é quando o filme se interrompe que também nasce o contato com quem assiste. É depois disso que se tem a experiência valorizada ou enfraquecida pelo nível de aproximação que cada espectador faz a partir da abertura dessa interrupção. Afinal, são temas complexos ou próprios de uma narrativa clássica que marcam vidas e trajetórias. Seja em produções em que a interrupção aparece em tela, ou quando ela está mais no nosso encontro com o que é mostrado do que precisamente na matéria fílmica, quando o filme se interrompe é que surge nova obra.


Este texto foi produzido durante a formação “Perspectivas Pretas: Oficina de Crítica Audiovisual”, conduzida pelo projeto INDETERMINAÇÕES a convite do NICHO 54. Orientados por Gabriel Araújo e Lorenna Rocha, os textos críticos se debruçam sobre os filmes exibidos no NICHO NOVEMBRO 2021.

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