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Talvez a ambivalência seja um bom lugar para começar

Talvez a ambivalência seja um bom lugar para começar

Por Luan Santos

Data de publicação: 10/11/2021

Atenção: este texto contém spoilers

 

A figura de policiais pretos (black cops) tem sido cada vez mais comuns em obras audiovisuais, principalmente nos EUA, mas também com visível circulação entre filmes brasileiros. Obras como Brooklyn 99, que se concentra em um departamento de polícia em Nova York, Infiltrado na Klan (BlacKKKlansman, Spike Lee, 2018), sobre um policial negro que se infiltra na Ku Klux Klan, e M8 - Quando a Morte Socorre a Vida (Jeferson De, 2019), entre outras, levantam questões em torno de arquétipos e representações desses personagens. Muitas vezes tal presença pode apaziguar e diminuir as problemáticas dessa instituição, com personagens-pretos-heróis ou policiais pretos que reforçam a violência – como acontece em M-8, que exibe uma cena de violência onde o policial aponta uma arma contra o protagonista, ambos negros, enquanto reproduz códigos de violência racial.

 

A questão que paira é: como abordar esses personagens “problemáticos” – no sentido de implicação entre “vida real” e o “cinema” – por já carregarem o fardo de serem contraditórios por integrarem corporações antinegras, sem que a gente limite suas presenças naquilo que pode ser visto como “bom” ou “ruim”? Podemos assumir a ambivalência como lugar de partida para pensar esses personagens? São perguntas como essas que parecem mobilizar o curta Como Respirar Fora D’Água, que, dessa vez, adiciona a complexidade de uma relação familiar entre um pai policial e uma filha, ambos pretos.

 

A personagem Jana (Raphaella Rosa) começa o filme fazendo seu treino na piscina. Ela parece habitar, naquela cena, um conforto e bem-estar proporcionado por estar dentro da água. A água, inclusive, surge como signo que o filme maneja constantemente, seja no título, no espaço de natação da protagonista, nas cores e tons de azuis que marcam a cinematografia ou, indo mais a fundo, como meio desencadeador de uma consciência crítica na protagonista.

 

Logo após sair do treino e caminhar para casa, escutando música em um fone de ouvido, a personagem adentra num beco, sem perceber a presença de policiais logo atrás de si. Cercada por eles, Jana é abordada de costas e chamada por palavras no masculino. Corte. Título. A montagem e a mise em scène, que deixa certos elementos fora de quadro, concentrando-se no rosto e nos detalhes de gestos da personagem, colaboram para dar dramaticidade ao impacto da cena, que escolhe não representar, ali, a violência explícita da abordagem. Essas articulações de linguagem da montagem e da decupagem da obra demonstram uma sensibilidade em lidar com questões muito debatidas sobre como abordar a violência contra corporeidades marginalizadas no cinema.

 

Após o enquadro, Jana pede ajuda para o seu pai Julio (Dárcio de Oliveira), também policial. Ambos estão no carro, mas não se comunicam. Paira uma atmosfera de inquietação entre essas presenças. O pai demonstra preocupação ao perguntar para a filha se ela está machucada. Contudo, logo em seguida afirma que “nada aconteceu”. A afirmação faz Jana levantar a voz e indagar “Pai, como assim nada aconteceu?”. Essa passagem coloca em choque a relação entre pai e filha, reforçando a dualidade que é ali representada, onde, ao mesmo tempo em que o personagem demonstra preocupação paterna, há também a naturalização do discurso em torno dos enquadros contra pessoas negras pela instituição policial.

 

Afinal, se nada aconteceu, como pode alguém se machucar? Esse é o cerne da obra dirigida por Júlia Fávero e Victoria Negreiros, a pergunta que parece ecoar dentro e fora do quadro quando, após uma experiência traumática, a protagonista começa a questionar a profissão do pai. Como lidar com a violência da presença policial que parece atravessar até o conforto do lar?

 

 

Em Jana, a corporeidade – instância que abrange o conjunto de elementos que compõem os seres, não somente em sua materialidade – é marcada pelo trauma da violência racial. O hematoma em seu braço é uma marca que perdura por toda a obra, disparadora para fazê-la questionar criticamente o trabalho de seu pai. Outro exemplo dessa relação conflituosa e ao mesmo tempo afetiva está na cena em que o pai tenta elogiar a filha, mesmo que de forma machista e inapropriada. Ele afirma que Jana fica mais bonita utilizando brincos, apontando somente a feminilidade como lugar de beleza. E ela expressa o seu incômodo com a situação. Esse comentário reforça o tratamento sofrido por Jana em sua abordagem pelos policiais, quando estes a chamam por pronomes e palavras no masculino. A todo momento, a aparência dela é atravessada por questões de gênero e performances de feminilidade, e isso é colocado em relação a partir das instâncias do doméstico e da rua, entre a figura do pai e a dos policiais, fato que borra cada vez mais essa relação.

 

É importante pensar nas relações interpessoais, principalmente nas relações familiares, levando em consideração as complexidades e dualidades com que estas são formadas. Existir através do entre e rasgar os binarismos.

 

Noutra cena, Jana espera o pai ir ao trabalho para adentrar o seu quarto em busca de alguma evidência, algo que talvez nem a própria personagem saiba. Reenquadrada pela porta, Jana procura pelo quarto até encontrar uma camisa do uniforme da polícia com sangue seco. Em um gesto estranho, a protagonista, com feição séria, cheira a blusa ensanguentada de seu pai enquanto o som extradiegético coloca no presente a violência que seu pai aparentemente cometeu. É um plano interessante pela imbricação entre como Jana lida com essa evidência e o som que “denuncia” as ações de seu pai como policial. Mas, simultaneamente, o ato de se aproximar, entrar em contato e cheirar a blusa parece apaziguar a questão, já que esse encadeamento evidencia um certo gesto afetivo vindo da personagem em um momento de conflitos internos.

 

Deitada no sofá aguardando o pai chegar, Jana, com a camisa ensanguentada em mãos, o confronta assim que este chega. A discussão começa forte. Jana lança a evidência da má conduta policial nos braços do pai e pergunta: “Que merda é essa?”. O momento é bem construído pela movimentação dos atores em cena, pela montagem que dá ritmo e impulsiona os conflitos e pelo uso de uma trilha sonora que imprime um tom mais soturno, impregnado de uma presença aguda e constante. Confrontando o pai em torno das ações problemáticas da polícia, que o mesmo diz serem “acidentes”, a narrativa navega pela ambivalência dessa figura e dessa relação como um todo. Essa sequência é utilizada para revelar que negros policiais também sofrem com a violência, já que o pai exibe um hematoma em seu peito, muito parecido com o de Jana, e profere a frase: “Você pensa que é a única injustiçada?”

 

 

É uma escolha corajosa de assumir o compromisso com a contradição e aproximar personagens que não são binários, mas complexos. Mas, a partir dessa aproximação entre as condições de violações que os personagens sofrem, a discussão esfria e parece virar outra chave, como se a posição de pai e filha fossem equivalentes apenas por serem pretos – quando, na verdade, sabemos que o pai exerce outro tipo de relação de poder. Mesmo assim, a personagem parece não mais questionar o comportamento do pai e a evidência de uma violência que deflagrada por ele, mas buscar uma compreensão da sua situação. Por um lado, isso é justo, haja vista a relação afetiva construída entre pai e filha. Contudo, essa escolha carrega o perigo de despersonalizar totalmente a instituição da polícia.

 

Ao cabo, parece ser dito que os indivíduos pretos que fazem parte dela não podem ser questionados por suas ações, já que também sofrem com a violência do Estado. Nesse ponto, parece-me que a ambivalência dessa relação familiar e da presença do pai é inundada por um apaziguamento das questões problemáticas que envolvem fazer parte de uma corporação antinegra sendo uma pessoa preta, já que o afeto presente nessa relação mascara os conflitos que habitam na contradição. A instituição é questionada, mas o pai que a integra é tratado como mais uma vítima. No fim da discussão, o pai estende as mãos para a filha, que apesar de relutante, toma-as de volta.

 

Deslocando-se e criando oposições entre afeto e trauma, Como respirar fora d’água consegue transitar bem entre ambos os polos, mantendo um tom mais tenso ao mesmo tempo que, por exemplo, gera uma leveza por meio da relação entre a protagonista e sua namorada, Mari (Giovana Lima), também mulher preta. A mise en scène realça a relação entre as personagens, repleta de afeto e compreensão, quando enquadra os toques carinhosos e a interação desses corpos em cena, criando nuances na narrativa. Movimentar esse jogo entre o afeto e as contradições, colocando por vezes esses sentimentos de forma coabitada que se entrelaçam, é possibilitar e oferecer – toda imagem é oferta – experiências pretas que são múltiplas, entrelaçadas e ambivalentes.

 

Noutro momento, enquanto treina na piscina, sem revelar para sua treinadora o que aconteceu na ida para casa, Jana é atravessada por memórias fragmentadas da abordagem que sofreu. Na cena, a montagem opera de modo mais experimental, ligeira, recortando tempos e gerando uma angústia por meio de um emaranhado de sons sinuosos, sirenes e de submersão nas águas. Jana perde o fôlego, não consegue respirar com as memórias que a inundam. Mas o gatilho que desencadeia essa experiência é a presença de um segurança que fica ao redor da piscina, cuja aparição se dá diversas vezes ao fundo dos planos. Me parece que o personagem surge somente para ser usado a fim de criar uma relação com o pai de Jana, fazendo a personagem a se confrontar com a presença – ora cuidadosa, ora ameaçadora – da pessoa com quem divide o espaço doméstico.

 

Pergunto-me, contudo: por que utilizar esse personagem, homem negro de farda que apenas aparece nas periferias do quadro, como o catalisador de uma consciência crítica? E por que o colocá-lo em um contra-plongée intimidante, cercado por luzes azuis e vermelhas do giroflex, junto ao som de sirenes, numa montagem que articula as imagens da agressão cometida por policiais brancos, que não têm o rosto mostrado? Quando a obra faz esse movimento, parece deixar escapar a ambivalência que tem nutrido desde o início, pois coloca esse personagem sem falas e sem ações de importância narrativa como representativo dos homens negros fardados que são atrelados a instituições antinegras e, de alguma forma, catalisam pavor.

 

Como reforcei, a ambivalência não é o problema. Na real, acredito muito que o audiovisual preto nacional parece caminhar para abordar com mais frequência personagens e narrativas que não se dão na chave do binarismo entre “boa” e “má” representação. Obras que acionam aquilo que está entre essas duas categorias aprisionantes. A questão problemática se encontra justamente no uso do contraditório, a dualidade que marca a relação de pai e filha, não como impulsionador das questões sem uma resposta fácil, mas como apaziguador dos conflitos emergentes. No curta, tal uso parece reforçar uma tomada de posição que se configura enquanto tática de desculpabilizar determinados indivíduos por estes serem marginalizados.

 

Como respirar fora d’água desconsidera, assim, as complexidades das forças de poder, esquecendo que se pode ser, ao mesmo tempo, agredido e agressor. Quando a obra retira essa ambivalência, e a protagonista parece ignorar a conduta do pai a fim de justificar uma compreensão harmoniosa de suas labutas, perde-se a complexidade do personagem, pois nega justamente o seu caráter ambíguo.

 

Retorno então à cena em que ambos estão no carro, na saída da delegacia, onde há um desconforto entre os dois justamente pelo confronto entre as posições de policial e pai nessa relação familiar. A cena em questão instiga a ambivalência de ambos os personagens sem minimizar os conflitos presentes. Talvez a chave seja habitar essa contradição e, simultaneamente, desencadear sensações conflituosas que não findam as problemáticas.


Este texto foi produzido durante a formação “Perspectivas Pretas: Oficina de Crítica Audiovisual”, conduzida pelo projeto INDETERMINAÇÕES a convite do NICHO 54. Orientados por Gabriel Araújo e Lorenna Rocha, os textos críticos se debruçam sobre os filmes exibidos no NICHO NOVEMBRO 2021.

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