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Travessuras e desobediências

Travessuras e desobediências

Por Egberto Santana

Data de publicação: 09/11/2021

 

O ato de olhar e o jogo entre quem olha e quem está sendo observado são aspectos que chamam atenção no filme Lagarto (Akinola Davies, 2021). Uma garota negra de 8 anos, Juwon (Pamilerin Ayodeji), guia o espectador. Antes de assistirmos à sua primeira aparição, nos confrontamos com uma imagem de Jesus colada na parede de um local empoeirado. O enquadramento está acompanhado de sons estridentes. Nesse local, também vemos um grupo de homens que estão rezando o Pai Nosso e se preparando para algo que ainda não sabemos exatamente o que é. Na sequência, vemos Juwon sendo expulsa de uma sala de aula. De maneira controversa, é justamente no momento em que a menina fica de castigo, ou seja, obrigada a permanecer na inércia, que começamos a nossa jornada fílmica.

 

A câmera toma o lugar do olhar de Juwon, que acompanha os movimentos do lagarto, animal que dá nome ao filme de Akinola, e ele finalmente aparece. Em instantes, a câmera muda de lugar e passamos a ver a garota parada em frente a sala, assistindo de relance aquela pequena criatura. Como se algo estivesse a chamando, ela passa a ir atrás dele e passamos a ser sequestrados pela curiosidade da garota e testemunhas da fuga do bicho.

 

Inesperadamente, o curta ganha outra direção, causando um desnorteamento: nos perdemos e já não sabemos mais em que lugar estamos. A garota corre e anda pelo labirinto de uma igreja e o banheiro nojento que vemos na tela, junto a intensa banda sonora, faz pensar que estamos num filme de terror, de monstruosidades, justificada também pela presença anterior do lagarto. O suspense vai ganhando corpo e, quanto mais ela se aproxima de algum corredor, algo muito violento parece que está prestes a acontecer.

 

Mas somos novamente ludibriados e a cena muda. A sensação de perigo transforma-se na porta de entrada para o submundo dessa igreja, onde funcionárias contam rios de dinheiros e os pastores namoram escondidos sob a presença de um boneco com a representação de Jesus. Junto a essas cenas também está o olhar de Juwon, nossa guia por esse mundo labiríntico dessa instituição monumental.

 

 

Curiosa e aventureira, a menina insiste em sua teimosia e persiste a sustentar o olhar. Ela desafia e observa os vários pequenos atos de corrupção, que são revelados por uma porta semiaberta ou pela chegada em um espaço recém-descoberto. O suspense construído anteriormente confere tons caricatos a essas corrupções, com um teor crítico em relação a tais comportamentos. Sob o olhar de Juwon, construído por Akinola, os atos corruptos tornam-se ainda mais intrigantes.

 

No palco da igreja, em frente aos seus fiéis fervorosos, um pastor comenta de maneira enfática sobre os perigos da ganância e do acúmulo de dinheiro perante os olhos de Jesus. O tom de ironia do filme ganha novos volumes. Juwon, por sua vez, concorda e repete o que o pastor pede para ser dito, criando um belo disfarce entre o rebanho de fiéis. Obedecendo para desobedecer, como bem fez no início do filme com seu professor de educação religiosa. Desobediente também são os fiéis, através da corrupção pela deturpação dos usos da religiosidade, e que são confrontados pelo olhar opositivo construído pelo curta Lagarto.

 

Dentro dessa atmosfera fílmica, o filme de Akinola Davies cria uma série de choques que flutuam entre o mistério fantástico e as imagens de caricatura afiadamente críticas. A corrupção, a descoberta da igreja pela garota, sua curiosidade e a criação de um ambiente misterioso sustentam o jogo entre aqueles que olham e estão sendo vistos. Tudo isso aos olhos de uma criança, brincando com a ambivalência do olhar de Juwon que vai de ingênua a curiosa, travessa a desobediente.


Este texto foi produzido durante a formação “Perspectivas Pretas: Oficina de Crítica Audiovisual”, conduzida pelo projeto INDETERMINAÇÕES a convite do NICHO 54. Orientados por Gabriel Araújo e Lorenna Rocha, os textos críticos se debruçam sobre os filmes exibidos no NICHO NOVEMBRO 2021.

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